1.11.07

Cabeça bem feita

MORIN, Edgar. Cabeça bem feita. 3ª edição. Bertrand Brasil: Rio de Janeiro, 2003.



O livro nos aponta caminhos para pensarmos em educação no sentido mais amplo da palavra, compreendendo o sujeito inserido no universo e as relações dele com o todo. Para Morin (2003) existe uma inadequação muito grande e isso é grave, pois os saberes são fragmentados por disciplinas e, dessa forma se tornam invisíveis as entidades multidimensionais; as interações e retroações entre partes e o todo; os problemas essenciais; conjuntos complexos. Esse formato de currículo impossibilita de se perceber o que o autor chama de global e essencial, pois “[...] problemas essenciais nunca são parceláveis, e os problemas globais são cada vez mais essenciais”. (MORIN, 2003). Retalhar conteúdos por meio de disciplinas torna-se impossível a aprendizagem global em rede de conexões. E, dessa maneira, o desafio da globalidade na educação está no campo da complexidade que compõem saberes sociais que são inseparáveis. Desde o primário as escolas obedecem esse sistema na separação de objetos, disciplinas e dissociação de problemas, resumindo o estudante a um contexto simples e descontextualizado com o mundo dinâmico e até provocando a perda de aptidões naturais para contextualizar e interligar saberes diversos. Nesse texto é proposto pensarmos nesse problema do ensino fragmentado que leva efeitos problemáticos cada vez maiores e também apontam três desafios que é o cultural, o sociológico e o cívico. Mas, para o autor, o desafio dos desafios é a necessidade retirar todos os desafios interdependentes, pois “a reforma do pensamento é que permitiria o pleno emprego da inteligência para responder a esses desafios e permitiria a ligação de duas culturas dissociadas”. (2003) Essa reforma é paradigmática e de acordo com a capacidade de organizar o conhecimento. Até hoje, todas as reformas realizadas são carentes para o ensino. A reforma que precisamos é a do pensamento.
A “cabeça bem-feita” não simplesmente acumula saberes, mas tem aptidão geral para colocar e tratar os problemas e tem princípios organizadores que interligam os saberes dando-lhes sentido. A aptidão geral é o uso da inteligência e necessita de domínios da cultura das humanidades e cultura científica dando ênfase ao “pensar bem”, dessa forma a organização dos conhecimentos, que se constitui em uma tradução e reconstrução de sinais, signos, símbolos, idéias, teorias e discursos, é realizada de operações de ligação e separação, análise e síntese.

O desenvolvimento anterior das disciplinas científicas, tendo fragmentado e compartimentado mais e mais o campo do saber, demoliu as entidades naturais sobre as quais sempre incidiram as grandes interrogações humanas: o cosmo, a natureza, a vida e, a rigor, o ser humano. As novas ciências, Ecologia, ciências da Terra, Cosmologia, são poli ou transdisciplinares: têm por objeto não um setor ou uma parcela, mas um sistema7 complexo, que forma um todo organizador8. Realizam o restabelecimento dos conjuntos constituídos, a partir de interações, retroações, inter-retroações, e constituem complexos que se organizam por si próprios. Ao mesmo tempo, ressuscitam entidades naturais: o Universo (Cosmologia), a Terra (ciências da Terra), a natureza (Ecologia), a humanidade (pela visão em perspectiva da nova Pré-história do processo multimilenar de hominização). (MORIN, 2003).

Nessa perspectiva, a ecologia envolve a zoologia, microbiologia e botânica e também é necessário compreender as ciências humanas para dialogar entre o mundo humano e a biosfera, ou seja, ciência ecológica. A ciência da terra prevê o estudo da geografia abrangendo a física terrestre, biosfera e o homem nesse contexto, já a cosmologia envolve conhecimentos de biologia e física. Além dessas, o autor também aponta os atrasos das ciências inter relacionadas e diz que “uma educação para uma cabeça bem-feita, que acabe com a disjunção entre as duas culturas, daria capacidade para se responder aos formidáveis desafios da globalidade e da complexidade na vida quotidiana, social, política, nacional e mundial”. (MORIN, 2003).
É enfatizada pelo autor a consciência da condição humana que dependem não apenas das ciências humanas e filosóficas, mas também das ciências naturais (cosmologia, ecologia e ciências da terra). É preciso situar o homem no universo e faze-lo perceber parte integrante do mesmo.

Em meio à aventura cósmica, no extremo do prodigioso desenvolvimento de um ramo singular da auto-organização viva, prosseguimos, à nossa maneira, na aventura da organização. Essa época cósmica da organização, incessantemente sujeita às forças da desorganização e da dispersão, é, também, a época da reunião, e só ela impediu que o cosmo se dispersasse e desaparecesse, tão logo acabara de nas cer. Nós, viventes, e, por conseguinte, humanos, filhos das águas, da Terra e do Sol, somos um feto da diáspora cósmica, algumas migalhas da existência solar, uma ínfima brotação da existência terrestre. (MORIN, 2003).

A nova cultura cientifica nos oferece um novo olhar a cultura humanística, filosófica, histórica e geral de uma forma mais aberta e mutável diante a condição do homem, que é mutável, dinâmico, complexo e psicosociocultural, na terra. Assim, a nova cultura científica oferece uma maior compreensão do ser integrante do todo. A contribuição das ciências humanas nesse processo é muito fraca atualmente porque estão desconectadas e fragmentadas ao estudo da condição humana e essa situação anula a noção do ser. Seria necessário a criação de uma ciência antropossocial religada que abrangesse o homem, a cultura e a diversidade grupal e individual com um entendimento psicológico. O estudo das contribuições culturais das humanidades é outra questão importante nesse processo, pois envolve pensamentos profundos da condição humana. São: o estudo da linguagem (literária, poética, etc) que permite, entre tantas coisas, a auto-reflexão e experimentos, e também o estudo das artes que envolve a estética (musica, pintura, escultura, etc).
Morin cita Durkheim, considerado o pai da sociologia para dizer que a educação não é apenas transmitir conteúdos, mas sim “criar nele um estado interior e profundo, uma espécie de polaridade de espírito que o oriente em um sentido definido, não apenas durante a infância, mas por toda a vida”. É fundamental o entendimento do conhecimento para a transformação mental do próprio aprendiz. È por meio da escola da vida que o sujeito traduz as informações em conhecimento e se compreende no mundo. A cultura das humanidades são representações simbólicas, ou seja, as informações que serão absorvidas através das vivencias sociais das quais a literatura, a poesia e o cinema fazem parte. Quanto a iniciação à lucidez, Morin (2003) diz que a própria iniciação à onipresença do problema do erro:

É necessário, e isso desde a escola primária, que toda percepção seja uma tradução reconstrutora realizada pelo cérebro, a partir de terminais sensoriais, e que nenhum conhecimento possa dispensar interpretação. Assim, a partir de testemunhos contraditórios do mesmo acontecimento, podemos mostrar que, à vista de um acidente de carro, por exemplo, pode haver falsas percepções que comportam, em geral, racionalizações alucinatórias. Podemos ilustrar casos de percepção imperfeita, por hábito ou por atenção maldefinida, desatenção a um detalhe insignificante, interpretação precipitada de elemento inusitado e, sobretudo, deficiência de visão de conjunto, ou ausência de reflexão. É preciso ilustrar os casos de memorização demasiado segura, que se autoconfirma na repetição de uma lembrança deformada. Da mesma maneira, é preciso observar que uma preocupação de inteligibilidade, demasiado fraca, leva a ignorar a significação de um fato ou de um acontecimento, ao passo que uma preocupação excessivamente forte de inteligibilidade leva a um erro racionalizador que altera essa significação. Serão dados exemplos de decisões desastrosas, tomadas não apenas por irreflexão, cinismo ou irresponsabilidade, mas também por processos psíquicos de racionalização absurda ou ocultação inconsciente, destinados a preservar a nossa paz de espírito. (MORIN, 2003).


Deve-se permanecer de forma progressiva até o ensino médio onde será enfatizado a oposição entre a racionalização, sistema lógico de explicação e a racionalidade e, no ensino superior trabalhar-se com lógica e racionalidade auto-crítica sob a luz da psicologia do conhecimento e das ciências cognitivas.
O autor também fala sobre a inexistência da noosfera, que trabalha no âmbito imaginário, dos mitos e das idéias que estão presentes na vida das pessoas e da importância dessa introdução aos símbolos na formação do ser bem como a necessidade de revitalização das ciências filosóficas nos currículos pois ela é o ponto fundamental para a compreensão do homem e do mundo.
Para Edgar Morin, a maior contribuição do conhecimento no século 20 foi a dos limites do próprio conhecimento como a incerteza física e biológica (mudanças de paradigma), a incerteza humana (incerteza no principio do conhecimento: cerebral – construção disposta a erros; físico – interpretativos; epistemológico – crise dos fundamentos da certeza) e os três viáticos (ação, estratégica e o desafio).
A aprendizagem cidadã para Morin é a contribuição na autoformação do homem e como se tornar cidadão partindo da idéia da democracia, solidariedade e responsabilidade para com a pátria. O Estado-Nação envolve conceitos que ele define como palavras-chave: comunidade/sociedade (sociedade complexa que envolve aspectos de colaboração diversos setores da vida social); comunidade de destino (de caráter cultural/histórico); entidade mitológica ( caráter espiritual de fraternidade entre “filhos da pátria”); religião nacional (A mitologia matripatriótica inclui cerimônias de exaltação, objetos sagrados -bandeira, monumento aos mortos-, o culto de adoração à Mãe-Pátria, os cultos personalizados aos heróis e mártires). Para ele, o estado-Nação poderia ser ultrapassado porque no quadro interno da nação o Estado acaba sendo homogêneo por conta dos aspectos técnico-burocrático e também porque “todos os grandes problemas exigem soluções multinacionais, transnacionais, continentais, até planetárias, e necessitam de sistemas associativos, confederativos ou federativos, metanacionais”. (MORIN, 2003). A identidade européia é uma identidade entre as nações por conta do processo histórico de colonização e até hoje conduzem um padrão de comportamento criando uma identidade globalizada. É imprescindível nesse contexto concebermos ao mesmo tempo, uma identidade terrena tendo em primeiro lugar a idéia que todos pertencemos ao mesmo planeta e somos expostos a ameaças ecológicos da biosfera; identidade humana comum ainda que diferentes em aspectos socioculturais e geográficos; e, por último, que somos integrantes de uma comunidade terrestre.
No sétimo capítulo, Morin fala dos três graus e como divisar as finalidades de cada um deles. No primeiro temos o primário que onde se ganha autonomia e se aprende a conhecer por meio de duas vias: a interna e a externa. A primeira passa pela a auto-análise e auto-crítica quando se estrutura uma forma de pensar. A via externa é a tradução das informações em conhecimento. Nesse momento as crianças interagem com diversas mídias disponíveis atualmente como computador, celulares, tv, games, etc.
No segundo momento encontramos o secundário, quando a aprendizagem deve ser um diálogo com a própria cultura levando a reflexão das ciências e literatura relacionadas a escola da vida. E, na universidade, o sujeito já conserva, memoriza, integra e já atua segundo valores culturais. “A Universidade deve, ao mesmo tempo, adaptar-se às necessidades da sociedade contemporânea e realizar sua missão transecular de conservação, transmissão e enriquecimento de um patrimônio cultural, sem o que não passaríamos de máquinas de produção e consumo” (MORIN, 2003). Para tal, se faz necessário uma reforma no ensino das universidade por meio de uma reforma do pensamento. Essa reforma deve compreender que o conhecimento das partes depende do conhecimento do todo e o contrario também; que reconheça os fenômenos multidimensionais, em vez de isolálos; que reconheça e trate as realidades que são solitárias e conflituosas; que respeite a diferença; substituir o pensamento que distingue e une para introduzir um pensamento complexo. Essa reforma partiria das ciências, da literatura e da filosofia e de todos os níveis do pensamento.
Os sete princípios apontados pelo autor para que haja a reforma do pensamento são: o princípio sistêmico ou organizacional (conhecimento das partes e do todo); o princípio hologrâmico (põe em evidência este aparente paradoxo das organizações complexas, em que não apenas a parte está no todo, como o todo está inscrito na parte); o princípio do circuito retroativo (permite o conhecimento dos processos auto-reguladores); princípio do circuito recursivo (é um circuito gerador em que os produtos e os efeitos são, eles mesmos, produtores e causadores daquilo que os produz); princípio da autonomia (auto-organização); princípio dialógico (une princípios que são, na verdade, indissociáveis); e o princípio da reintrodução do conhecimento em todo o conhecimento (opera a restauração do sujeito e revela o problema cognitivo central: da percepção à teoria científica, todo conhecimento é uma reconstrução/tradução feita por uma mente/cérebro, em uma cultura e época determinadas).
Partindo desses pressupostos, Morin acredita que o humanismo seria regenerado iniciando um novo modo de pensar, unindo e solidarizando conhecimentos separados. Para ele, deve haver mais critérios de ensinamentos respeitando a singularidade de cada indivíduo, além de reformas de flexibilidade em relação a carga horária, organização de conteúdos, com uma missão clara de que a carreira do professor requer além de técnicas, exige uma arte, amor, fé na cultura e nas possibilidades do espírito humano. As finalidades da cabeça bem feita são: aptidão para organizar o conhecimento, o ensino da condição humana, a aprendizagem do viver, a aprendizagem da incerteza, a educação cidadã. Assim se dará inicio a democracia cognitiva tendo claro a noção de sujeito:

O sujeito não é uma essência, não é uma substância, mas não é uma ilusão. Acredito que o reconhecimento do sujeito exige uma reorganização conceptual que rompa com o princípio determinista clássico, tal como ainda é utilizado nas ciências humanas, notadamente, sociológicas. No quadro de uma psicologia behaviorista, é impossível, claro, conceber um sujeito. Portanto, precisa-se de uma reconstrução, precisa-se das noções de autonomia/dependência; da noção de individualidade, da noção de autoprodução, da concepção de um elo recorrente, onde estejam, ao mesmo tempo, o produto e o produtor. É preciso também associar noções antagônicas, como o princípio de inclusão e exclusão. É preciso conceber o sujeito como aquele que dá unidade e invariância a uma pluralidade de personagens, de caracteres, de potencialidades. Isso, porque, se estamos sob a dominação do paradigma cognitivo, que prevalece no mundo científico, o sujeito é invisível, e sua existência é negada. (MORIN, 2003).


A cabeça bem feita nasce no contexto globalizado e simbólico e para ele se volta em uma inter-relação simbiôntica a partir da consciência da educação paradigmática e, para tanto, é imprescindível a compreensão da concepção complexa do sujeito.
Confira o vídeo de Morin: mudanças de paradigmas